O tipo de homem que eu gosto
Um que goste de ser visto por mim, que queira ser algo para mim
Dou mais atenção nesses últimos dias aos homens que realmente me interessam. Falo de homens bonitos com a pressuposição assumida de que essa ideia é subjetiva. Então tudo que se lê aqui é a partir da única percepção que eu conheço: a minha.
Contemplo corpos como se fossem esculturas, e acho que realmente os são às vezes. Eu tenho essa agudez cítrica de me sentir completamente atraído por uma curva específica, uma definição que escapa, uma obscenidade tediosa porque sempre exposta, mas que ainda assim me consegue ser tão interessante ao ponto de me surrupiar os olhos. É assim que encaro dedos, nucas, braços, coxas internas, a elevação antes do dedão quando dobrado para dentro, mãos inteiras, o osso saltado do pulso, a nuca, a parte invisível que vai até atrás da orelha - e fotos, fotos com cortes muito específicos de um corpo exposto com o punctum barthesiano, essa mediação entre olho e exclusiva sensualidade gráfica.
Barthes fala que o spectator se aproxima da fotografia como se fosse uma ferida, e sinto que é realmente assim. Anos atrás, em um restaurante praiano com mesa de vidro grossa, sento em uma ponta, de frente à minha mãe. Sinto ardência no cotovelo, algo mínimo, um breve incômodo, passo a mão sem ver como se fosse uma coceira e tudo bem. Em meio ao corte do bife acebolado, com faca na mão, a minha mãe aponta para o meu cotovelo e diz “ué, tu tá sangrando?”, e eu realmente estava. Olho para baixo e, ao ver os cortes superficiais de meu cotovelo na ponta do vidro quebrado da mesa, meu braço começa a ser sentido: o aumento da ardência; uma suposta sensação de pequenos cacos de vidros que entraram ali; e a dor e o desespero controlados à procura de um band-aid. É isso o punctum, que dá vida aos corpos que admiro - a minha percepção (sensibilidade, ou subjetividade) transposta a algo natural do outro, uma parte inata (invisível, como o machucado despercebido); Barthes diz “ponto cego”, mas que eu vejo e, ao ver, eu sinto.
Corpos feios seriam, portanto, corpos extremamente desinteressantes à minha cultura. Observo e não há uma elevação, uma curva, um osso ou algo muito pequeno ou muito grande que sequestra a atenção - não há nada a ser pontuado. Que corpos são esses?
Corpos que se movimentam exaustivamente à procura de serem iguais se transformam em nada, e não é nem uma antítese do corpo, como se existisse o não-corpo, o anticorpo, o acorporal (talvez os surrealistas fizeram isso?), mas é um genuíno nada. O corpo que não tem nada a ser notado se torna algo comum, uma ideia, propriedade do ordinário, o cadáver de uma conceitualização - um corpo padrão.
Mas não é disso que quero continuar falando. Obedeço ao meu desejo quando escrevo sobre a sensação conflituosa de encarar corpos que admiro. Eu não sei apreciar corpos que eu amo sem utilizar da lente estética, e aliás não sei se é realmente possível amar algo ou alguém pelo o que se é. A impossibilidade: em sua frente eu não te vejo, mas vejo o que os meus olhos olham de você - e há coisas em você que me enfeitiçam a visão. Ou, quando encaro meu torso, não encaro o peito de Gabriel porque eu invento para mim o que é esse corpo, assim como é qualquer outra escultura.
Traço um certo padrão por meus punctums (puncti? punctums? perco-me. afinal, o punctum não cabe muito bem em pluralismos) e sinto que só serei capaz de amar alguém como amo esculturas, quadros, fotografias; amar alguém como uma obra de arte, com todo o cuidado estético necessário. Amar aceitando a tragédia romântica da incapacidade de ser uno com o outro; ou namorar aceitando a natureza do amor, que depende exclusivamente de duas pessoas. George Simmel,
É entre o eu e o tu que, aos olhos da consciência humana, se produz o primeiro de seus dissentimentos e a primeira de suas unificações.
Amar o que eu vejo. Este é o tipo de homem que eu quero: um que goste de ser visto por mim, que queira ser algo para mim. Não quero alguém que deixe de ser o que (sente que se) é para ser confortável ao meu bem-estar; quero um provocador, um incomodado, e que ao se sentir assim provoca agonia ao seu redor; um abridor de feridas.
Renuncio à estabilidade do conforto para assumir a curiosidade de amar.
Gonçalo M. Tavares faz relações (partindo de Nietzsche, Derrida, Barthes e outros) mostrando como a dor faz parte do amor considerando o ato de sacrifício. O corte que se abre quando um deixa de ser tanto ele mesmo para se tornar algo mais próximo de nós: é essa a prova de amor (esse machucado) que preciso ver para me sentir amado. Percebo que enfim me aproximo de uma religião, afinal almejo um culto de adoração (há a idolatria, a catarse sublime, o sacrifício, a mediação conceituada entre sujeito e subjetividade).
Nada mais natural que eu ame dançarinos, essas esculturas vivas que voam do chão. Eles se opõem à artificialidade da pose fotográfica; o ofício deles não está comprometido com a falsificação de si mesmo. O meu fascínio é principalmente aos dançarinos de fundo, os que ficam em segundo plano (aqui entra novamente aquela obscenidade tediosa em que crio foco), os que dançam explicitamente de forma bela mas que passam despercebidos aos olhos desatentos, pois o artista principal, em meio à legião de dançarinos, faz de tudo para ser punctum de seu público, e raramente o é efetivamente, justamente porque ele implora para ser olhado sem fazer-se ladrão de olhos.
Imagens de dançarinos, de fotos muito bem enquadradas em um ângulo peculiar, de esculturas gregas, essas são as imagens que me machucam porque carrego elas comigo. A sua duração é latente, uma vez que após de explícita, após ser ocorrida, ela fica vibrando em mim, tal como qualquer outro rastro que é mais potente que a força que o procura dizimar. Jean Genet,
Eu gostaria de matar, como já disse antes, mais que um velho, eu gostaria de assassinar um belo jovem louro, para que já unidos pelo laço verbal que liga o assassino ao assassinado (cada um existindo graças ao outro), eu possa, nos dias e noites de melancolia desesperada, ser visitado por um gracioso fantasma.
E o que eu sou para quem eu amo?
Já fui um namorado soberbo de meu sentimentalismo e que garantia ser capaz de amar o mundo inteiro se esse mundo lhe fosse amável - já fui esse namorado, enquanto eu me trancava em meu quarto. Procuro me desamarrar de meu egoísmo; enfim quero que o mundo saiba o que eu amo nele. Roland Barthes,
[…] a história de amor […] é o tributo que o enamorado deve pagar ao mundo para se reconciliar com ele.